Os jardins zoológicos humanos
No final do século XIX, não havia um
único cidadão francês que não tivesse descoberto uma reconstituição
"autêntica" desses ambientes selvagens, povoados de homens e de
animais exóticos, entre uma exposição, a missa dominical e o passeio no lago
por Nicolas Bancel, Pascal Blanchard,
Sandrine Lemaire
Os zoológicos humanos, exposições
etnológicas ou aldeias negras continuam sendo assuntos complexos a serem
abordados por países que exaltam a igualdade de todos os seres humanos. De
fato, esses "zoos", nos quais indivíduos "exóticos"
misturados a animais selvagens eram mostrados atrás das grades ou em recintos
delimitados a um público ávido de distração, constituem a prova mais evidente
da defasagem que existe entre o discurso e a prática no tempo da construção dos
impérios coloniais.
"Canibais australianos, machos e
fêmeas. A única colônia desta raça selvagem, estranha, desfigurada e a mais
brutal nunca antes capturada das regiões selvagens em todos os tempos. A ordem
mais baixa da humanidade."
"Exibições etnológicas" A
idéia de promover um espetáculo zoológico pondo em cena populações exóticas
aparece paralelamente em vários países europeus ao longo da década de 70 do
século passado. Inicialmente, na Alemanha, onde em 1874 Karl Hagenbeck,
vendedor de animais selvagens e futuro promotor dos principais zoos europeus,
decide apresentar, aos visitantes, ávidos de "sensações", nativos de
Samoa e da Lapônia como populações "genuinamente naturais". O sucesso
dessas primeiras exibições o conduz, a partir de 1876, a enviar um de seus
colaboradores ao Sudão egípcio, a fim de trazer animais bem como nubianos, para
renovar a "atração". Esses últimos tiveram sucesso imediato em toda a
Europa, sendo apresentados sucessivamente em diversas capitais como Paris,
Londres e Berlim. Tal sucesso influenciou, sem dúvida alguma, Geoffroy de
Saint-Hilaire, diretor do Jardim de Aclimação, que procurava atrações capazes
de reverter a situação financeira delicada em que se encontrava seu
estabelecimento. Ele decide então, em 1877, organizar dois "espetáculos
etnológicos", apresentando os nubianos e esquimós aos parisienses. O
sucesso foi fulminante. A freqüência ao Jardim dobrou e alcançou, naquele ano,
milhões de ingressos pagantes? Os parisienses acorreram para descobrir o que a
grande imprensa qualificava de "grupo de animais exóticos, acompanhados
por indivíduos não menos singulares". Entre 1877 e 1912 foram montadas com
sucesso no Jardim Zoológico de Aclimação, em Paris, cerca de trinta
"exibições etnológicas" desse tipo.
Vários outros lugares iriam
rapidamente apresentar os mesmos "espetáculos" ou adaptá-los para
fins políticos, a exemplo das exposições universais parisienses de 1878 e de
1889 (com a torre Eiffel, como "atração máxima"), que tinham como
principais atrações uma "aldeia negra" e 400 figurantes
"indígenas"; a de 1900, com seus 50 milhões de visitantes, além do
famoso diorama [2] "vivo" de Madagascar; e ainda, mais tarde, as
exposições coloniais de Marselha, em 1906 e 1922, e também as de Paris, em 1907
e 1931.
Uma reconstituição
"autêntica" Estabelecimentos passam a se especializar no
"lúdico", como as representações programadas no Campo de Marte, na
boate Folies-Bergères ou na Cidade Mágica, e na reconstituição colonial, como,
por exemplo a da derrota dos daomeanos, [3] liderados por seu último rei,
Behanzin, para o exército francês, no teatro da Porte Saint-Martin...
Para atender a uma demanda mais
"comercial" e ao apelo do interior do país, as feiras e as exposições
regionais tornaram-se, bem depressa, os principais lugares de promoção dessas
exibições. É nesta dinâmica que são estruturadas, muito rapidamente, as
"turnês" itinerantes — passando de exposição a feira regional —, e se
popularizam as célebres "aldeias negros" (ou "aldeias
senegalesas"), como por ocasião da exposição de Lyon em 1894. Não há uma
só cidade, uma exposição ou um francês que não tenha descoberto, numa tarde
ensolarada, uma reconstituição "autêntica" desses ambientes
selvagens, povoados de homens e de animais exóticos, entre uma exposição
agrícola, a missa dominical e o passeio no lago.
O discurso das "raças
inferiores" São milhões de franceses que vão, de 1877 ao início dos anos
30, ao encontro do Outro. Um "outro" levado à cena na gaiola. Quer
seja um povo "estranho", vindo dos quatro cantos do mundo, ou
indígenas do império, trata-se, para a maioria dos metropolitanos, do primeiro
contato com a alteridade. É grande o impacto social desses espetáculos para a
construção da imagem do Outro. Principalmente porque eles são combinados com uma
propaganda colonial onipresente (pela imagem e pelo texto) que impregna
profundamente o imaginário dos franceses. No entanto, esses zoos humanos
ficaram ausentes da memória coletiva.
O aparecimento, depois o impulso e o
entusiasmo pelos zoos humanos, resulta da articulação de três fenômenos
concomitantes: inicialmente, a construção de um imaginário social sobre o Outro
(colonizado ou não); em seguida, a teorização científica da "hierarquia
das raças", na esteira dos avanços da antropologia física; e, enfim, a
edificação de um império colonial, então em plena construção. Bem antes da
grande expansão colonial da Terceira República dos anos 1870-1910, que termina
com o traçado definitivo das fronteiras do império ultramarino, manifesta-se,
na metrópole, uma paixão pelo exotismo, ao mesmo tempo que se constrói — na
fronteira de várias ciências — um discurso sobre as "raças" ditas
inferiores. Logicamente, a construção da identidade de toda civilização dá-se
sempre sobre as representações do outro, permitindo — como num espelho —
elaborar uma auto-representação e se situar no mundo.
A mecânica colonial da inferiorização
No que diz respeito ao Ocidente, as primeiras manifestações são encontradas na
Antiguidade (a categorização do "bárbaro", do "meteco" [4]
e do cidadão), retomadas pela Europa do tempo das Cruzadas e, depois, por
ocasião da primeira fase de explorações e conquistas coloniais nos séculos XVI
e XVII. Mas até o século XIX essas representações da alteridade não passaram de
incidências, não necessariamente negativas, não parecendo ter penetrado
profundamente no corpo social.
Com os impérios coloniais
consolidados, o poder das representações do outro impõe-se num contexto
político muito diferente e num movimento de expansão histórica de amplitude
inédita. A questão fundamental continua sendo a colonização porque ela impõe a
necessidade de dominar o outro, de domesticá-lo e, portanto, de representá-lo.
As imagens ambivalentes do
"selvagem", marcadas por uma alteridade negativa mas também pelas
reminiscências do mito do "bom selvagem" de Rousseau, são
substituídas por uma visão claramente estigmatizante das populações
"exóticas". A mecânica colonial de inferiorização do indígena pela
imagem é então acionada e, nessa conquista dos imaginários europeus, os zoos
humanos constituem, sem dúvida alguma, a engrenagem mais viciada da construção
dos preconceitos sobre as populações colonizadas. A prova está lá, para todos
verem: trata-se de selvagens, vivendo e pensando como selvagens. A ironia da
história é que esses bandos de indígenas que atravessavam a Europa (e mesmo o
Atlântico), ficavam muitas vezes de 10 a 15 anos fora de seus países de origem
e aceitavam a encenação? desde que remunerados. Não é outro o cenário da
selvageria instalada no zoo pelos organizadores dessas exibições: ao final do
século: o selvagem reivindica um salário! [5]
A estigmatização da selvageria
Paralelamente, um racismo popular instala-se na grande imprensa e na opinião
pública, como pano de fundo da conquista colonial. Todos os grande meios de
comunicação, dos jornais ilustrados mais populares — como Le Petit Parisien ou
Le Petit Journal — às publicações de caráter "científico" — La Nature
ou La Science amusante —, passando por revistas de viagens e de exploração —
como Le Tour du Monde e o Journal des Voyages —, apresentam as populações
exóticas — e muito particularmente as submetidas à conquista colonial — como
vestígios dos primeiros estágios da humanidade.
O vocabulário de estigmatização da
selvageria — bestialidade, gosto de sangue, fetichismo obscurantista, estupidez
atávica — é reforçado por uma produção iconográfica de uma violência inaudita,
propagando a idéia de uma subhumanidade estagnante, humanidade dos confins
coloniais, na fronteira da humanidade e da animalidade. [6]
"Raças superiores" e
"raças inferiores" Simultaneamente, a inferiorização dos
"exóticos" é consolidada pela tripla articulação do positivismo, do
evolucionismo e do racismo. Os membros da Sociedade de Antropologia — criada em
1859, mesma data que o Jardim da Aclimação de Paris — estiveram por várias
vezes nessas exibições de grande público, com o objetivo de realizar suas
pesquisas voltadas para a antropologia física. Esta ciência, obcecada pelas
diferenças entre os povos e o estabelecimento de hierarquias, dava à noção de
"raça" um caráter predominante nos esquemas de explicação da
diversidade humana. Através dos zoos humanos, assiste-se ao desenvolvimento da
construção de uma classificação das "raças" humanas e da elaboração
de uma escala unilínea, que permite hierarquizá-las de cima a baixo na escala
evolucionista.
O conde de Gobineau, por exemplo, com
sua obra Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-1855), estabeleceu a
desigualdade original das raças, criando a "beleza das formas, da força
física e da inteligência", e consagrando assim as noções de "raças
superiores" e "raças inferiores". Como muitos outros, postula a
superioridade original da "raça branca", que detém, segundo ele, o
monopólio desses três elementos e serve de norma, permitindo classificar o
negro num estado de inferioridade irremediável, no degrau mais baixo da escala
da humanidade, e as outras "raças" como intermediárias.
Os pensadores da desigualdade Essa
classificação encontra-se nas programações parisienses dos zoos humanos, condicionando
grandemente a ideologia subjacente desses espetáculos. Quando, por exemplo, os
cossacos foram convidados ao Jardim Zoológico da Aclimação, a embaixada da
Rússia insistiu para que eles não fossem confundidos com os "negros"
vindos da África. Do mesmo modo, quando Buffalo Bill chegou com sua trupe
encontrou seu lugar no Jardim, contando com a presença de "índios" em
seu espetáculo! Finalmente, os liliputianos foram, sem nenhum problema,
apresentados ao público, segundo a mesma terminologia da diferença, da
monstruosidade e da bestialidade aplicada às populações exóticas!
O darwinismo social, vulgarizado e
reinterpretado na virada do século por Gustave Le Bon e Vacher de Lapouge,
encontra sua tradução visual de distinção entre "raças primitivas" e
"raças civilizadas" nessas exibições de caráter etnológico. Esses
pensadores da desigualdade descobrem, por meio dos zoos humanos, um laboratório
fabuloso de espécimens até então inimagináveis na metrópole.
Tanto a antropologia física como a
emergente antropometria — na época, uma gramática dos "caracteres
somáticos" dos grupos sociais, sistematizados desde 1867 pela Sociedade de
Antropologia com a criação de um laboratório de craniometria, e depois a
frenologia — legitimam a continuidade dessas exibições. Incitam os cientistas a
manterem ativamente as programações por três razões pragmáticas: a
disponibilidade de um "material" humano excepcional (variedade,
número e renovação dos espécimens?); o interesse do grande público por suas
pesquisas, e portanto a possibilidade de promover seus trabalhos na grande
imprensa; e finalmente, a demonstração mais comprobatória da procedência dos
enunciados racistas pela presença física dos "selvagens".
Liliputianos, corcundas e
macrocéfalos Ora, nesta percepção linear da evolução sociocultural e
proximidade ao mundo animal, as civilizações não européias são, evidentemente,
consideradas como atrasadas, mas passíveis de serem civilizadas, portanto,
colonizáveis. Fecha-se o círculo. A coerência dos espetáculos torna-se uma
evidência científica, ao mesmo tempo que uma perfeita demonstração das teorias
nascentes sobre a hierarquia das raças e uma perfeita ilustração in situ da
missão civilizadora ultramarina. Cientistas, membros do lobby colonial e
organizadores de espetáculos, todos tiram proveito.
A aplicação dos fundamentos
antropológicos "darwinianos" da ciência política, celebrizada e
popularizada por essas exibições, vai muito rapidamente influenciar as ciências
irmãs e o projeto "eugenista" de Georges Vacher de Lapouge, que
consistia na melhoria das qualidades hereditárias, desta ou daquela população,
por meio de uma seleção sistemática e voluntária. Muito significativamente, as
exibições de "monstros" (anões ou liliputianos no Jardim Zoológico da
Aclimação, em 1909; corcundas ou gigantes nos inúmeros parques de diversão
itinerantes; macrocéfalos ou "negros" albinos em Paris, em 1902)
conhecem, na virada do século, um grande sucesso, acompanhando e interpenetrando
o sucesso estrondoso dos zoos humanos. É lógico que, dialeticamente, eugenia,
darwinismo social e hierarquia racial têm correspondência entre si. E
compartilham uma mesma angústia diante da alteridade, angústia que encontra seu
exutório [7] na racionalização desigual das "raças", numa
estigmatização comum do "corrompido" e do "indígena".
"Ritos canibalescos" e
"barbárie" Os "zoos humanos" encontram-se assim na
confluência do racismo popular e da objetivação científica da hierarquia
racial, ambos frutos da expansão colonial. Índice notável desta confluência, as
"exibições etnológicas" do Jardim Zoológico da Aclimação são
legitimadas, como vimos, pela Sociedade de Antropologia e pela quase totalidade
da comunidade científica francesa. Ainda que entre 1890 e 1900 a Sociedade de
Antropologia se torne claramente mais circunspecta quanto ao caráter
"científico" desses espetáculos, ela não pode deixar de apreciar o
afluxo de populações que lhe permitem aprofundar suas pesquisas sobre a diversidade
das "espécies". A ruptura se dará, finalmente, devido à crescente
importância que passam a ter essas diversões apreciadas pelo público e,
sobretudo, pelo fato de eles se tornarem cada vez mais populares e burlescos.
É preciso dizer que esses espetáculos
— assim como as exibições no Campo de Marte e nas Folies-Bergères — são
estruturados a partir de uma representação cada vez mais elaborada da
"selvageria": trajes rídiculos no estilo barroco, danças frenéticas,
simulação de "combates sanguinários" ou "ritos canibalescos",
insistência em programas publicitários sobre a "crueldade", a
"barbárie" e os "costumes desumanos" (sacrifícios humanos,
golpes com armas cortantes?).
Uma barreira intransponível Tudo
converge para que, entre 1890 e a primeira guerra mundial, uma imagem
particularmente sanguinária do selvagem se imponha. Os "espetáculos"
— construídos sem nenhuma preocupação de verdade etnológica, cumpre dizer —
remetem, desenvolvem, atualizam e legitimam os estereótipos racistas mais
doentios que formam o imaginário sobre o "outro" no momento da
conquista colonial. Na realidade, é fundamental destacar que o
"fornecimento dos indígenas" segue de perto as conquistas da
república ultramarina, recebe o aval (e o apoio) da administração colonial, contribuindo
para sustentar explicitamente a empreitada colonial da França.
Os tuaregues, por exemplo, foram
exibidos em Paris nos meses que se seguiram à conquista francesa de Tumbuctu,
em 1894; também os malgaxes, que apareceram um ano após a ocupação de
Madagascar; e finalmente o sucesso das célebres amazonas do reino de Abomey,
que se seguiu à comentada derrota de Behanzin para o exército francês no Daomé.
A vontade de degradar, humilhar, animalizar o outro — mas também de glorificar
a França ultramarina através de um ultranacionalismo que conheceu o auge após a
derrota de 1870 — é então plenamente assumida e destacada pela grande imprensa,
ao mostrar aos colonizadores "indígenas" exaltados, cruéis, cegos
pelo fetichismo e sedentos de sangue. Assim, as diferentes populações exóticas
tendem todas a ser mostradas em seu cotidiano pouco atraente: há um fenômeno de
uniformização na caricatura do conjunto das "raças" apresentadas, que
as torna praticamente indiferenciadas. Entre "eles" e
"nós", há, a partir deste momento, uma barreira intransponível.
A animalização do outro Os
"selvagens" trazidos ao Ocidente são sem dúvida atraentes, mas no
entanto despertam um sentimento de medo. Suas ações e movimentos devem ser
rigorosamente controlados. São apresentados como absolutamente diferentes e sua
incursão européia os obriga a se comportarem como tal, pois lhes é proibido
manifestar qualquer sinal de assimilação, de ocidentalização, durante o tempo
em que são exibidos. Deste modo, é impossível que eles se misturem aos
visitantes, na maior parte das manifestações. Caracterizando-se segundo os
estereótipos em vigor, seus trajes são concebidos para parecerem o mais
originais possíveis. Os exibidos devem, além disso, permanecer no interior de
uma parte especificamente delimitada do espaço da exposição (sob pena de
aplicação de multa sobre seus já parcos salários), o que marca a fronteira
intangível entre seu mundo e o dos cidadãos que os visitam e os inspecionam.
Uma fronteira delimita escrupulosamente a selvageria e a civilização, a natureza
e a cultura.
O que mais chama a atenção nesta
brutal animalização do outro é a reação do público. Ao longo dos anos de
exibições quotidianas, poucos jornalistas, políticos ou cientistas comoveram-se
com as condições sanitárias e de abrigo — muitas vezes catastróficas — dos
"indígenas"; sem falar nos inúmeros casos de morte (como os ocorridos
em 1892, com os índios Kaliña, de Galibi, em Paris [8]) pouco habituados ao
clima francês.
Imagem invertida da ferocidade
colonial? Contudo, alguns relatos ressaltam o horror desses espetáculos. Com
relação a isso, a atitude do público não é o assunto menos chocante: inúmeros
visitantes jogam alimento ou quinquilharias aos grupos expostos, comentando
suas fisionomias, comparando-os aos primatas (retomando com isso uma das
cantilenas da antropologia física, ansiosa em revelar os "caracteres
simiescos" dos indígenas), ou rindo abertamente à visão de uma africana
doente e tremendo em sua cabana. Essas descrições — algumas cheias de lacunas —
demonstram razoavelmente o sucesso da "racialização latente dos
espíritos" contemporânea. Em tal contexto, o império podia crescer com a
consciência tranqüila, instituindo a desigualdade jurídica, política e
econômica entre europeus e "indígenas", com base no racismo endêmico,
uma vez que na metrópole se encontrava a prova de que fora dela só havia
selvagens recém-saídos das trevas.
Evidentemente, os zoos humanos nada
revelam sobre as "populações exóticas". Por outro lado, constituem um
instrumento extraordinário de análise das mentalidades do final do século XIX
até os anos trinta. Na verdade, zoos, exposições e jardins tinham o objetivo
básico de mostrar o raro, o curioso, o estranho, todas as expressões do não
habitual e do diferente, por oposição a uma construção racional do mundo,
elaborada segundo padrões europeus. [9]
Não seriam essas dissimulações
raivosas, afinal, a imagem invertida da ferocidade — esta, bem real — da
própria conquista colonial? Não haveria a vontade — deliberada ou inconsciente
— de legitimar a brutalidade dos conquistadores por meio da animalização dos
conquistados? Nesta animalização, a transgressão dos valores e das normas do
que representa para a Europa a civilização constitui um elemento chave.
A ambivalência do fascínio No domínio
do sagrado, a norma sexual é evidentemente a primeira. A poligamia toca, assim,
num dos fundamentos sócio-religiosos da família cristã. O fato que os zoos
humanos acolham famílias inteiras — com as diferentes esposas do chefe de
família — é significativo. Na melhor das hipóteses, o espectador vem contemplar
uma coisa bizarra e incompreensível, e na pior, a manifestação de uma lascívia
animal, trazendo, na interrogação expressa no olhar, o desejo insaciado de um
fantasma que, mesmo no Ocidente, constitui o inverso do proibido.
O tema da sexualidade é
particularmente desenvolvido. Para os "negros", cresce o mito de uma
sexualidade bestial, plural. Nesse mito, que abrange considerações físicas (uma
grande vitalidade e órgãos genitais considerados superdesenvolvidos, tanto no
homem quanto na mulher), cristaliza-se a ambivalência do fascínio por seres que
se encontram no limiar entre a animalidade e a humanidade. A própria vitalidade
sexual remete a uma vitalidade corporal de conjunto — visível, por exemplo, em
inúmeras gravuras dos grandes jornais ilustrados da época, que evocam o combate
vigoroso de "tribos" quase nuas diante das tropas coloniais —,
provocando um fascínio pelo corpo do "selvagem". Esse fascínio é o
produto da preocupação, vivida no final do século XIX, com a "degeneração
biológica" do Ocidente. [10]
No capítulo da transgressão do
sagrado, a recorrência ao tema da antropologia é reveladora. No momento em que
(final do século XIX) quase nada se sabe a respeito de uma prática social
fortemente ritualizada e, de qualquer maneira, extremamente limitada à África
subsaariana, as imagens de "selvagens antropófagos" invadem os meios
de comunicação e são um dos argumentos que mais contribuem para vender os zoos
humanos (até a Exposição Colonial Internacional de 1931 e a presença periférica
dos kanak). [11] O canibalismo rompe, na verdade, um tabu importante; a
aproximação com o mundo animal torna-se evidente. Com relação a isso, as
encenações realizadas nas exposições ou nas salas de espetáculos revelam a
força do tema.
A era da "missão
civilizadora" A partir da exposição universal de 1889 e até o final do
período entre as duas guerras vão se multiplicar as exposições, em particular
as coloniais. Em sua quase totalidade, são propostos à curiosidade dos visitantes:
uma aldeia "negra", "indochinesa", "árabe" ou
"kanak". Simultaneamente, essas aldeias "negros" ou
senegalesas — sinal de uma evolução semântica muito interessante no período que
se seguiu à grande guerra — tornam-se atrações autônomas, itinerantes e
perfeitamente instrumentalizadas no interior do país, mas também por toda a
Europa e nos Estados Unidos.
As apresentações se sucedem, ano após
ano, com quatro ou cinco trupes distintas que percorrem as grandes exposições
regionais como Amiens, Angers, Nantes, Reims, Le Mans, Nice, Clermont-Ferrand,
Lyon, Lille, Nogent, Orléans? e as grandes cidades (e jardins zoológicos)
européias como Hamburgo, Antuérpia, Barcelona, Londres, Berlim ou Milão, onde
chegam a afluir de 200.000 a 300.000 visitantes por exibição.
As encenações passam, então, a ser
muito mais "etnográficas" e as "aldeias" parecem enfeites
fabricados em papelão, dignos das produções hollywoodianas da época sobre a
África misteriosa [12]. São admirados os produtos típicos e o "artesanato"
comercializado (provavelmente uma das primeiríssimas exposições de "arte
negra" destinada ao grande público!); formas originais de organização
social são progressivamente reconhecidas e geralmente mostradas como traços de
um passado que a colonização deve necessariamente abolir. As reconstituições
fantasiosas de "danças indígenas" e os episódios históricos famosos
são espaçados e acabam sumindo.
Uma outra conjuntura se revela: o
"selvagem" volta a ser doce, cooperativo, à semelhança, para dizer a
verdade, de um império que quer, às vésperas da primeira guerra mundial, passar
a imagem de definitivamente pacificado. Nessa época, os limites territoriais do
império são, de fato, traçados. À conquista sucede-se a "missão
civilizadora", discurso que será ardentemente defendido pelas exposições
coloniais. O administrador sucede ao militar. No momento em que o tema
propriamente racial tende a desaparecer, sob a influência "benéfica"
da França das Luzes, da República colonizadora, os "indígenas" voltam
a ocupar a base da escala das civilizações. As aldeias negras substituem os
zoos humanos. Certamente, o indígena continua sendo um ser inferior, porém
"domesticado", em quem se descobre o potencial de evolução que
justifica o gesto imperial.
Esta nova percepção do outro-indígena
encontrará sua maior intensidade por ocasião da Exposição Colonial
Internacional de Vincennes, em 1931, que, com uma área de centenas de hectares,
constitui a mutação mais bem conduzida do zoo humano sob o manto da missão
civilizadora, de boa consciência colonial e de apostolado republicano.
Os zoos humanos constituem, portanto,
um fenômeno cultural fundamental — até aqui totalmente oculto — por sua
amplitude e também por permitirem compreender como se estrutura a relação co
[1] Plakate, 1880-1914, Historiches
Museum, Frankfurt.
[2] N.T.: Trata-se de uma tela
panorâmica, sem bordas que, projetada em sala escura, produz a ilusão de
movimento, graças ao efeito do jogo de luzes. O primeiro diorama foi instalado
em Paris em 1922 por Daguerre e Bouton. Cf. Petit Larousse en Couleurs. Paris:
Librairie Larousse, 1972, p. 281.
[3] N.T.: Os daomeanos eram, até
1975, os habitantes de Daomé, hoje República Popular do Benin. Béhanzin foi seu
último rei, tendo governado entre 1889 e 1893, quando foi aprisionado e
derrotado pelos franceses.
[4] Palavra que designava em Atenas o
estrangeiro residindo na cidade. Hoje, de sentido pejorativo, é utilizada para
designar o estrangeiro vivendo em um país. (NT)
[5] Nem todos os grupos
"importados" dispunham de um mesmo e único status. Os "fueguinos",
por exemplo, habitantes da Terra do Fogo, situada no extremo Sul do continente
sul-americano, parecem ter sido "transportados" como espécimens de
zoológico propriamente ditos; enquanto, os "gaúchos", espécie de
artistas contratados, tinham plena consciência da máscara que vestiam em cena
para os visitantes.
[6] Ler, de Nicolas Bancel, Pascal
Blanchard e Laurent Gervereau, Images et Colonies, ed. Achac-BDIC, Paris, 1993.
[7] Ferida artificial cujo fim é
provocar uma supuração permanente. Cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
1ªed. (NT).
[8] Ler, de Gérard Collomb, "La
photographie et son double. Les Kaliña et ’le droit de regard’ de l’Occident", in
L’Autre et Nous, Éditions Syros-Achac, 1995.
[9] Ler, de Anne McClintock, Imperial
Leather. Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest, ed. Routledge,
Londres, 1994.
[10] Ler, de Christian Pociellot e
Daniel Denis (org.), A l’école de l’aventure, ed. PUS, Voiron, 2000.
[11] Ler, de Didier Dæninckx,
Cannibale, ed. Gallimard (coleção Folio). e Éditions Verdier, reedição, 1998.
[12] Nome de uma trupe itinerante
apresentada no Jardim Zoológico da Aclimação.
[13] Ler, de Nicolas Bancel e Pascal
Blanchard. De l’indigène à l’immigré, col. "Découvertes", ed.
Gallimard, 1998.
[14] Ler, de Sylvia Zappi, "Un
sondage révèle une progression du racisme et de l’antisémitisme", Le
Monde, 16/3/ 2000.
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